A partir de “Os Cantos de Maldoror”, a obra-prima literária que Isidore Ducasse, sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, deu à estampa nos finais do séc. XIX, os Mão Morta, com os dedos de alguns cúmplices, estruturaram um espectáculo singular onde a música brinca com o teatro, o vídeo e a declamação.
Aí se sucedem as vozes do herói Maldoror e do narrador Lautréamont, algumas imagens privilegiadas das muitas que povoam o livro, sem necessidade de um epílogo ou de uma linearidade narrativa, ao ritmo da fantasia infantil – o palco é o quarto de brinquedos, o espaço onde a criança brinca, onde cria e encarna personagens e histórias dando livre curso à imaginação.
Em similitude com a técnica narrativa presente nos Cantos, a criança mistura em si as vozes de autor, narrador e personagem, criando, interpretando e fazendo interpretar aos brinquedos/artefactos que manipula as visões e as histórias retiradas das páginas de Isidore Ducasse, dando-lhes tridimensionalidade e visibilidade plástica. O espectáculo é constituído pelo conjunto desses quadros/excertos, que se sucedem como canções mas encadeados uns nos outros, recorrendo à manipulação vídeo e à representação.
Como um mergulho no mundo terrível de Maldoror, povoado de caudas de peixe voadoras, de polvos alados, de homens com cabeça de pelicano, de cisnes carregando bigornas, de acoplamentos horrorosos, de naufrágios, de violações, de combates sem tréguas… Sai-se deste mundo por uma intervenção exterior, como quem acorda no meio de um pesadelo, como a criança que é chamada para o jantar a meio da brincadeira – sem epílogo, sem conclusão, sem continuação!
Intervenientes
Texto Original Isidore Ducasse dito Conde de Lautréamont;
Selecção, Versão Portuguesa e Adaptação Adolfo Luxúria Canibal;
Música Miguel Pedro, Vasco Vaz, António Rafael e Mão Morta;
Encenação António Durães;
Cenografia Pedro Tudela;
Figurinos Cláudia Ribeiro;
Vídeo Nuno Tudela;
Desenho de Luz Manuel Antunes;
Interpretação Mão Morta (Adolfo Luxúria Canibal – voz / Miguel Pedro – electrónica e bateria / António Rafael – teclados e xilofone / Sapo – guitarra / Vasco Vaz – guitarra e xilofone / Joana Longobardi – baixo e contrabaixo);
Produção Theatro Circo e IMETUA – Cooperativa Cultural
Dia 19 de Maio :: Mão Morta :: Os Cantos de Maldoror
Grande Auditório
Inicio 22.00h
Preço único 10 €
3 comments:
Grande espectáculo.
Cumprimentos a todos.
"Peregrinação pelos “Cantos de Maldoror” dos Mão Morta
Uma verdadeira peregrinação para Portalegre foi o que aconteceu este fim-de-semana. A razão era óbvia, a segunda data dos "Cantos de Maldoror", pelos Mão Morta!
Antes de falar propriamente da performance, é preciso referir e salientar o dinamismo de uma cidade de Alto alentejo como é Portalegre. Ao contrário de muitas cidades que dizem apostar forte na cultura, seja ela qual for, esta cidade, dispõe de um Centro de Artes e Espectáculos com uma programação que mete inveja a muitas infra-estruturas do género desta no resto do país.
O facto dos Mão Morta terem estreado em Braga, no Theatro Circo uma semana antes e apresentarem-se numa segunda data na cidade de Portalegre, obrigou muitos dos fãs a deslocarem-se para os ver. Como foi o meu caso, por exemplo, mas concerteza não fui a única. Mas é preciso notar, que esta descentralização só é boa, pois se antigamente as pessoas iam até Lisboa e/ou Porto para verem o seu artista/banda/ performer, hoje as coisas já não são bem assim.
Relativamente ao espectáculo dos Mão Morta, arrepiou as mais de 500 pessoas que se encontravam ali, pois "Os Cantos de Maldoror", obra de Isidore Ducasse escrita sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont, encenada por António Durães, encaixou-se perfeitamente nestes músicos que mais se podiam chamar performers!
Um grande espectáculo e um grande livro levado a palco por uma grande banda de culto e prestígio que são os Mão Morta.
Para quem não teve a oportunidade, ou não quis deslocar-se até Braga ou Portalegre, aguardem por novas datas.
A entrevista aos Mão Morta, dentro de uma semana estará em Atrito e posteriormente aqui no blog dos Atritos, para que se possam deliciar com as "Carícias Malícias" dos Mão Morta, a falarem abertamente na voz do grande crooner Adolfo Luxúria Canibal!"
em http://atritos-sonoros.blog.pt/
" C'était une journée de printemps.
No exacto momento em que as luzes se apagam e o ruído deixa de ecoar na sala, sabemos porque é que os Mão Morta demoraram tantos anos a concretizar a ideia de levar Os Cantos de Maldoror a um palco: era necessária muita audácia para dar a conhecer este relato do Mal.
O Grande Auditório do Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre estava cheio (talvez não lotado) para assistir a Maldoror. Além dos fãs portalegrenses da banda, vieram também de longe outras pessoas que quiseram tomar parte num acontecimento que, dada a sua natureza, será certamente lembrado como único (além desta data, os Mão Morta apresentaram-se apenas em Braga para mais duas actuações). Sabia-se à partida que este não iria ser um concerto mas antes uma apresentação musicada d' Os Cantos de Maldoror, de Isidore Ducasse. Contam os membros da banda que esta tinha sido uma obra lida por quase todos durante a adolescência e que a vontade de transformar num espectáculo de palco tinha sido constantemente adiada até agora devido à constante actividade da banda e devido também à difícil tarefa de encenar uma obra tão radical.
Imediatamente após a abertura da cortina sabemos que o espectáculo vai de encontro àquilo que é já considerado o universo dos Mão Morta: os brilhantes figurinos de Cláudia Ribeiro enfatizam a estranheza que quer a música, quer as palavras de Ducasse provocam nos espectadores. Na pele de Maldoror ou de um narrador que se afasta desse anti-herói, Adolfo Luxúria Canibal toma conta do espectáculo, provocando ora arrepios, ora repulsão ou até mesmo (tímidos) sorrisos. A excelência de Canibal como diseur, já explorada no espectáculo Müller no Hotel Hessischer Hof, manipula o ânimo dos espectadores, conduzindo-os entre a tensão erótica do desejo por uma criança, a bestialidade associada ao amor ou a repugnância gratuita das vísceras de um cadáver.
Se as palavras de Ducasse são, quase sempre, radicais e violentas, o mesmo não acontece com a música criada para o espectáculo. Há tempo para descargas eléctricas brutais, para a electrónica tímida e minimalista a marcar o ritmo nos (poucos) momentos de acalmia, há trechos repetitivos que sublinham a violência das descrições que Adolfo Luxúria Canibal nos oferece enquanto nos olha com um esgar de loucura. Sobre ele há ainda a dizer que é um actor excepcional, seguríssimo de si mesmo na forma como se movimenta em palco ou como se filma durante o espectáculo, fazendo-nos muitas vezes duvidar se estamos perante um homem ou uma bizarra criatura da obscuridade.
A leitura proposta pelos Mão Morta resulta numa clara atitude de provocação e interpelação do espectador, que é convidado ao longo do espectáculo a sentir. É, no entanto, um convite a habitar as zonas mais profundas da consciência humana, a pensar conceitos como a pedofilia ou homosexualidade debaixo duma perspectiva manchada pelo sangue. As almas mais susceptíveis devem abster-se de tomar parte neste espectáculo. Para nós, que constituímos o resto do Mundo, já não existe qualquer salvação: fomos tocados pelo Mal."
em http://espacopontofinalparagrafo.blogspot.com/
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